sábado, 28 de março de 2009

Algumas vezes, ao longo da vida, sentimos uma cisão dentro de nós. A cabeça e o coração parecem seguir caminhos diferentes: a primeira puxa para um lado e o segundo puxa para o outro. Em princípio, um deles há-de estar certo e um deles há-de estar errado… Surge, então, a eterna questão: o que fazer?
Se aquilo que estiver em causa for algo que não é do foro íntimo, que não faz parte do núcleo essencial de cada pessoa, da esfera mais privada do ser humano, é bem provável que quem ganhe essa disputa interna seja a cabeça. Por exemplo, o nosso coração até pode incitar-nos a dizer umas quantas coisas, e algumas bem desagradáveis, ao nosso patrão, mas é quase certo que a cabeça vai levar-nos a engolir toda essa vontade, porque o dinheiro que pinga ao final do mês, ainda que pouco, é mais do que necessário para pagar as contas de casa. A necessidade fala mais alto, impõe a racionalidade! Ou quando os países levam a cabo negociações e realizam cimeiras, logo se esquecem rapidamente de questões como os direitos humanos, a democracia e a liberdade de expressão, que passam para um plano mais do que secundário para não atrapalharem oportunidades de negócio. Há alturas em que todos nós, quando queremos, sabemos ouvir a nossa cabeça e sabemos dizer ao coração para ficar quieto. Não quer dizer que seja a coisa certa, mas fazemos. (Ainda que haja reis que sejam capazes de, no tempo oportuno, levantar a voz para perguntar firme por qué no te callas?, honra lhes seja feita…)
No entanto, se aquilo que estiver em causa for algo do foro íntimo, algo da essência, do âmago do nosso ser, já é bem provável que o vencedor acabe por ser o coração. Por exemplo, no amor, não interessa se a cabeça nos diz que uma determinada pessoa é a certa para nós por mil e uma razões… O sentimento que se tem por outra, mesmo que seja completamente errada, vai bastar para as derrubar a todas! Nestes casos, não é que a racionalidade se perca, mas, em vez de se usar uma racionalidade lógica, quase científica (em que, a partir de determinadas premissas, se retira uma conclusão que se aceita e aplica), faz-se uso, isso sim, de uma racionalidade emocional! Sacrifica-se o lógico em nome de uma vontade interior maior, seja essa vontade motivada pela maior das tolices ou pelo maior dos brilhantismos… Veja-se o caso de um rei que aceita perder o trono para casar com uma plebeia. Veja-se o caso de alguém que aceita viver em recolhimento para se dedicar a Deus (ou o inverso, de alguém que deixa a vida religiosa para viver uma mais mundana). Nessas alturas, guia-nos igualmente um sentido de necessidade, mas já não de subsistência ou de sobrevivência. É uma necessidade de identidade… de ser como se é!
Ainda assim, mesmo que as coisas se passem normalmente desta forma, a pergunta mantém-se: o que fazer quando a cabeça e o coração não se entendem?
Ora, a resposta a esta pergunta vai depender daquilo que queremos para a nossa vida, porque nem um, nem outro hão-de estar sempre certos… Por isso, isto não é uma questão de termos a cabeça versus o coração. Como se um devesse ter supremacia sobre o outro, como se um devesse vassalagem ao outro. Isto é uma questão de valores versus interesses. Os valores simbolizarão o que é certo, já os interesses simbolizarão os nossos egoísmos… Como num tribunal temos advogados representando as partes em conflito, também em nós, vamos ter ora a cabeça, ora o coração representando ora valores, ora interesses. Cabe-nos, depois, tomar uma decisão e escolher ou o que é certo ou o que o nosso egoísmo manda, independentemente de, no momento, isso ser defendido pelo nosso coração ou pela nossa cabeça. Esqueçamos de onde vêm os impulsos para agir, de onde vêm os motivos, e concentremo-nos em perceber somente se são bons ou maus impulsos, se são bons ou maus motivos.
E é aqui que tudo se complica! Distinguir o que é bom do que é mau! E mesmo que se consiga fazer essa distinção, ainda é preciso saber até que ponto estamos dispostos ou preparados, nesse momento específico da nossa vida, a aceitar esse bem ou esse mal!
Por vezes, entregamo-nos ao nosso egoísmo, tão difícil é evitá-lo, mas, depois, a voz da nossa consciência ganha uma força inelutável, e não podemos senão fazer o que ela nos pede, remediando a situação em que nos metemos… Outras vezes, tentamos fazer o certo, lutamos, resistimos, debatemo-nos, mas em vão, já que a fraqueza de espírito se vai instalando…
Nessa luta interior, a confusão chega a ser tanta que perdemos de vista inclusivamente que há um certo e que há um egoísmo em confronto. É como se tudo fosse certo, porque mesmo o nosso egoísmo parece perder os seus contornos egoísticos. Baralha-se tudo, porque tornamos a fronteira entre um e outro bem mais ténue: passa a existir um certo, e, o certo para nós… Relativizamos as coisas pelo envolvimento em que caímos. Como se estivéssemos, inconscientemente, a ajustar a realidade que nos interessa ter (a torná-la mais aceitável) aos valores que eventualmente a possam desaprovar, para evitarmos sentimentos de culpa.
O ideal seria escolhermos os valores sobre os interesses, preferirmos o certo ao nosso egoísmo, mas, sem hipocrisias, isso não é assim tão fácil… Fazê-lo, consegui-lo, significaria deixar ficar para trás uma parte de nós que, muitas vezes, não queremos largar. Carregamos os nossos ombros com o peso do que nos interessa e não queremos abdicar disso com medo de se estar a desperdiçar algo de precioso. No fundo, temos medo de fazer o certo, porque ele, as mais das vezes, faz-nos abdicar das nossas zonas de conforto e de segurança… O certo faz-nos sentir órfãos de nós mesmos! E receamos isso, pois ficamos presos à ideia, ao pânico da orfandade, em vez de percebermos, que, no momento em que nos fizermos órfãos de nós, o certo, ele próprio, nos há-de adoptar…
Por isso mesmo, abdicar do nosso egoísmo é, sobretudo, um acto de fé! É abraçarmos a aventura de nos fazermos ao largo… Duc in altum!

(Em conexão com o texto de 28 de Agosto de 2008…)