quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Na biblioteca...

Vestida de preto e branco, adornada por teu franco cabelo negro, liso e comprido, da face posto em sossego por um aro alvo, seguro e decidido, vês um lugar ficar a salvo e, na mesa em frente à minha, vagar… Diriges-te para lá, com a certeza de quem se dá a convicção reconfortante de ter encontrado um ninho, um pequeno lar, do meu, vizinho, próximo e não distante! Entre um e outro olhares trocados discretamente, escolhes o lugar de frente para mim. Podias ter-te sentado, para mal de meu agrado, dando-me as costas… Mas fizeste uma escolha diferente. E, na tua escolha, me deste a dúvida sobre o que te leva a preferir as coisas postas assim. Gostava de pensar que sou eu a razão oculta que justifica a acção cujo impulso não indulta. Talvez, desafiando o retraído destino à ousadia de se cumprir, queiras dar uma oportunidade à improbabilidade de surgir, de um olhar gerar outros olhares até gerarem uma expressão, um sorriso, uma admiração, mesmo – quem sabe? no imprevisto tudo cabe… – uma troca de palavras! Mundo de fantasia, o meu… De onde me virá toda esta tontaria? Sorrio no meu desvario. O mais certo não é quereres ter-me por perto, mas, sim, evitares a porta que, em vez de fazer morta, contribui e anima à distracção com o entra e sai de quem fica e vai, vultos, alguns brutos, outros cultos, em perseguição de alguém ou de um espaço para fazer refém. Mas seria bonito se a minha ilusão até nem estivesse errada! Um elogio sem ser dito, feito pela calada. Obrigado, eu diria! Ponha-se o sol e finde-se o dia, que, por hoje, já está cego o meu ego de tanto encher o seu fole.
Os livros abrem-se. É dissecado que o corpo humano se expõe, estranhamente lhano como é apresentado! Sem alma, esquartejado… Órgãos, músculo e fibra, pedaços de matéria que não vibra, cujo vigor se vê desenhado e nulo. Estudante de medicina, serás… Atraente e inteligente, a menina?! Pergunto-me, então, onde se esconde o teu defeito, onde se inquina a tua beleza… Sim. Porque ninguém é perfeito! É da natureza, nuns lados, dar um jeito e, noutros, ter mão presa.
E por falar em mãos, reparo nas tuas, enquanto escreves e procuras, com a ponta dos dedos, chegar mais perto das figuras representadas nas páginas cujos enredos têm o enfoque do teu estudo, nesse livro sortudo, que recebe o teu toque.
Quero parar os meus olhos em ti pelo tempo que desejar, mas não ouso fazê-lo… Não quero ser inconveniente ou inoportuno! Não quero afugentar-te, ter no meu zelo a pena com que me puno de levar-te a acreditar que tens de sair de onde estás para teres sossego. E acho que não quero que me deixes sozinho. Porque já tens o meu apego e me cativaste o carinho! É que, sem o saberes (é certo), fazes-me companhia, entretendo-me a mente com o teu encanto, algo tímido, mas nada em demasia.
Gosto do modo como carregas a sobrancelha e como se assemelha esse teu breve sorriso a um brilho suave e leve que te ilumina o viso… O que te faz sorrir? Será um pensamento inesperado, impossível de reprimir, fruto deste nosso momento envergonhado impensável de surgir? E a propósito, (deixando a curiosidade me atingir…) o que te faz chorar? Dá para ver quão doce é o teu olhar, mas serão as tuas lágrimas mais doces que as minhas? Ou mais amargas? Fala-me do peso dessas cargas que deslizariam por teu rosto. Porque há uma tristeza que se sente, um amargo gosto que fica pela visão, em ti, de uma mágoa latente, que se desvenda em teus traços e te denuncia! Como se a noite te segurasse em seus braços, embalando-te em nostalgia… Engraçado! És linda… mas entristecida quando finda o teu sorriso. Filha do júbilo e da solidão, para me apanhar em contradição a vida te trouxe. Mulher de uma beleza agridoce!
Sei que olhas para mim, quando não estou eu a olhar para ti… Propositadamente desencontrados, sem fim, inconfessadamente embaraçados! Num bailado recatado, terno e tão valente, quanto quente, o sol num dia de Inverno. Gostava de ter o descaramento de te provocar a uma reacção, qualquer que ela fosse serviria o meu intento, penetrando a muralha que nos separa sem pingo de compaixão, rompendo a malha que nos prende nesta temerosa prisão. Tenho de abrir a minha boca! Tenho de lutar por fazer a vergonha pouca. Mas… e se a minha voz tremer? Como há-de ser? Se as palavras se desarranjarem na ponta da minha língua? (Percalços de monta fazem a coragem morrer à míngua.) Se o som, imprevisivelmente trapalhão, causar rubor? Ai que ainda nada fiz e já me sinto com calor… A minha determinação vencida pelo pudor numa luta repentinamente desigual. E o meu olhar como se te tivesse feito mal, a cair para o chão, vítima primeira, ferido ou até já morto, batendo em retirada ligeira. Teria, então, de encontrar em ti, no conforto de um gesto que deixe entrever empatia, o ânimo para perseverar, para não sucumbir à agonia que não se inibe de me assaltar… Estenderias a tua mão à minha coragem como a um pobre sem dinheiro? Dar-lhe-ias a coragem que ela não tem? Nem sempre as nuvens deixam ver o céu azul… O que imitarias tu? Um dia soalheiro ou de nevoeiro?
E nisto passa-se uma, quase duas horas… Nem parece! Não esfria, nem aquece esta dança que não nos cansa.
Arrumas as tuas coisas sem pressa. Canetas, livros, apontamentos de um trabalho que por hoje cessa… Permaneces sentada. Cotovelos na mesa, mãos no queixo segurando a cabeça, absorta no nada, olhos na janela fechada, depois em mim, e os meus nos teus. Por um segundo. Suficiente para um novo mundo. Um passo mais no nosso bailado. Se já acabaste o estudo por agora, porque não sais? Tua espera intriga-me… Como se, no teu silêncio, fizesses bem alto um último convite, me pusesses um desafio cuja provocação me arrebite, me desses uma última oportunidade… Desistirás desta nossa efémera ilusão, se eu não agarrar o momento, a ocasião? Perdoar-me-ás o acanhamento? Afinal, é para não te ser incómodo que não arrisco. Prefiro ser discreto a ser arisco… Não me movo, não me levanto da cadeira com o coração mais inquieto, não me dirijo à tua beira com o passo incerto, não deixo a minha voz sair em viagem até aos teus ouvidos, nem dou passagem ao imprevisto dos nossos sentidos. Move-se, por mim, o ponteiro dos segundos marcando o fim próximo da nossa dança.
A minha deixa passou…
Levantas-te. Deixas-me só, na solidão que me dou.