quarta-feira, 5 de março de 2008

Foi um sonho que tive… Uma alucinação de imagens de contextos desencontrados, mas colados ou sobrepostos uns aos outros, sem grande lógica, alinhavados por uma espécie de névoa mágica que me transportava de cenário para cenário quase sem me dar por isso. Foi um desconcerto de sensações extremado à incredulidade do que me ia acontecendo, um desfiar sem fim de um novelo intuitivo que me dizia que algo não bate certo pela admiração constante do impossível ou do improvável.
Foi o pedinte, aquele pedinte que eu tinha visto dias antes, na rua, que, com voz monocórdica, repetia sem se cansar ao passar dos rostos desconhecidos da gente anónima a mesma frase e o mesmo pedido: “senhora, se me pudesse dar qualquer coisinha para comprar comida, que eu não tenho nada em casa de comer… senhora, se me pudesse dar qualquer coisinha para poder comer… senhor, se me pudesse dar qualquer coisinha para comprar comida, que eu não tenho nada em casa de comer…”. Sempre levemente mais forte, só levemente, lhe saía a voz no início da rogatória, naquele senhor ou senhora em que temporariamente depositava toda a esperança que tinha no mundo, na expectativa que o mundo se fizesse mais próximo de si numa mão estendida que se desembaraçasse de uns trocados, na expectativa que o mundo não lhe virasse a cara ou lhe evitasse o olhar para ele poder gritar afonicamente até ao fim a sua trémula súplica gravada já só na garganta num tom que denunciava o lamento da sua sorte, na expectativa que o mundo se desse por vencido e o ajudasse pelo cansaço de o ouvir pedir e repetir, vezes sem conta, aquelas palavras tão gastas pela sua língua quanto as pedras do chão pelos nossos pés…
Foi o pedinte, aquele pedinte que eu vi desistir da sua luta face aos olhares desaprovadores de quem denunciava o seu incómodo por ter de ser confrontado com a miséria alheia, aquele que eu vi encolher em dignidade na exacta proporção em que apregoava, vez após vez, a sua indigência, aquele que eu vi recolher-se da incompreensão fria da rua para o frio húmido da sua barraca de zinco.
Foi o pedinte, aquele pedinte a quem eu próprio não abri a carteira (ou terá sido o coração?...), aquele que, ao atravessar a estrada, mais preocupado em descobrir em quanto estava avaliada a sua pobreza na contagem dos trocos que enchiam a sua mão, não viu o carro vir, rápido e certeiro, para o libertar da sua cruz da mesma forma que as moedas se libertaram e se espalharam no ar após o som do impacto seco anunciador de uma mudança fatal. Ficou no ouvido o silêncio gerado então, entrecortado apenas pelo tilintar da chuva metálica que atingia o asfalto, o carro, os vidros… Os olhares de todos atraídos para o mesmo ponto, como se o centro do mundo fosse o sangue daquele homem cuja voz e olhar eram, até há pouco, ignorados e desprezados. Agora, torcido no chão, tu tens a atenção de todos, mas são eles que não têm a tua! Até na morte te persegue o desencontro da vida.
Senhor, se me pudesse dar qualquer coisinha para comprar comida, que eu não tenho nada em casa de comer…
Foi a sua voz!... Que me perseguia, que surgia do nada para me condenar pela minha indiferença. Foi da sua voz que eu fugi, no desespero de quem sente uma angústia desmesurada, uma aflição assombrada pelo rasgar de uma guilhotina invisível prestes a pôr-me fim. Se ao menos as minhas pernas não estivessem tão pesadas! Se ao menos conseguisse correr… Tentava, com as mãos agarradas às paredes e com a força dos braços, dar-me o impulso suficiente para me mexer, numa espécie de alpinismo horizontal. Quem não tem cão, caça com gato. E o cinzento urbano em que me encontrava, deixou de ser, como se tivesse chegado ao fim da linha, dando lugar a um verde amarelado de plantas ressequidas pelo sol. Era a elas que recorria para me puxar, arrancando-as pela raiz no meu esforço, como se arrancasse erva daninha, sem me preocupar com o pó da terra que me sujava e me sugestionava a lembrança: “Tu és pó e ao pó hás-de voltar”… No mesmo instante, do meu lado esquerdo, reparei que, ao fundo, podia ver um cemitério, cuja mera visão me condicionou o raciocínio pelo desfile de pessoas de cujo enterro fui testemunha. Ai, como recordo as lágrimas que contive para não demonstrar fragilidade! Nem por vós deixei de preservar os meus olhos secos (ou terá sido o meu coração?...).
Senhor, se me pudesse dar qualquer coisinha para comprar comida, que eu não tenho nada em casa de comer…
Vergonha pela vergonha que tive! E surpresa pela descoberta de ser possível a alguém afogar-se no muito que não chorou. Era uma agonia de mar que me engolia. Nada em volta… e eu nele, flutuando, caindo em mim, num aperto lancinante no peito, prenúncio de um perigo iminente. Alguém que me acuda, que eu não sei nadar! Alguém… uma mão… O pânico que se apoderou de mim. Alguém… uma mão… Um nó na garganta que trazia o passado à lembrança. Alguém… uma mão… A solidão de não ter a quem recorrer.
Senhor, se me pudesse dar qualquer coisinha para comprar comida, que eu não tenho nada em casa de comer…
Fechei os olhos para me esconder do derradeiro instante da morte. Foi quando os abri para finalmente acordar sobressaltado na escuridão do meu quarto, de um salto erguendo-me na cama. Confusão momentânea. O que é real? O coração que não se acalma quebrando, para mim, o silêncio da noite. Mas que sensação de terror! Porquê?
Foi o pedinte, aquele pedinte que eu vi, aquele a quem deixei a sua barriga entregue à fome…. Ou terá sido o coração?...