sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Fui visitar-te semanas antes da tua morte. Já só vivias fechada em ti mesma, reclusa de um quase cadáver que nem comunicar te permitia mais. De um corpo outrora ágil, capaz e auto-suficiente, apenas restava agora força para um par de movimentos com o tronco e a cabeça, bem como com os olhos. Especialmente, diria eu, os olhos… Eles serviam de bastião de resistência e de testemunho do que foste para o mundo, e do que ainda continuavas a ser dentro de ti. O que foste, eras agora nos teus olhos. Eles tornaram-se o centro do teu ser, fundiram o teu coração e a tua mente, o teu passado e o teu presente. Expressão tortuosa de lucidez trancada numa incapacidade claustrofóbica agonizante. Ouvias e compreendias tudo à tua volta, só já não conseguias responder, excepto por um olhar ausente, perdido numa parede vazia, ou por um insistente, fixo em nós, determinado a fazer passar uma mensagem telepática.
Fui visitar-te no que acabou por ser a minha última despedida. Entrei em teu quarto no final do pequeno grupo que te vinha ver habitualmente. A recordação que guardo já não sei se corresponde à verdade do que aconteceu… Lembro-me de não ligares muito à invasão do teu espaço, semanal e assídua, que se parecia repetir uma vez mais, sem novidades nem motivos de interesse. Apenas a confirmação da passagem do tempo… que, do lado de fora daquelas paredes, do lado de fora da parede de pele que te limitava fisicamente, o mundo corria como sempre correra, mas agora sem ti… ou quase. À menção do meu nome seguiu-se a minha entrada. Viraste a cabeça para me veres. Para colocares em mim o teu carinho por teus olhos. E ele foi tanto que transbordou… Uma lágrima escorreu sem dificuldade por entre as rugas da tua prisão. Foi, assim, que, sem me dizeres uma única palavra, falaste comigo em segredo. Poucos segundos que pareciam ser capazes de conter uma eternidade. Tão intensos, que reconheço ter tido a necessidade de fugir com o olhar… Foi tarde demais, porém, para impedir que ficasses gravada na minha memória. Choraste por mim uma lágrima que relembro tantas vezes. Uma só, mas que corre ainda em mim continuamente. Que já se fez rio na lembrança que te tenho e que tem em ti a fonte.
Fui visitar-te para aprender de ti a tua última lição. Porque, quase morta a tua aparência, o pouco que existia de ti, existia quase só em essência. O que o teu corpo, indolentemente, fazia refém, os teu olhos vivificavam em simplicidade: o mais importante!… É que não era o físico que te prendia mais, tu é que já pouco vivias por ele… Estavas perto de ser livre! Ensinaste-me, nas tuas limitações, que eu conseguia ser mais prisioneiro do que tu, porque, embora eu pudesse mais, não me permitia ser mais. Viveste o suficiente para cumprires este derradeiro adeus e, depois, deixaste-te partir… Caiu o teu bastião de resistência e de testemunho, cerraram-se para sempre! Não se secou, contudo, o rio que deles nasceu, de uma gota pequenina que, em mim, se fez torrente.