terça-feira, 20 de maio de 2008

Considerações filosóficas

O homem é uma realidade natural e, como tal, projectado no tempo e no espaço. Contudo, esta realidade natural que o homem é, tem em si a potencialidade para viver coisas próprias do divino (cuja expressão maior é o Amor). Ou, dito de maneira menos dogmática, tem a potencialidade para ultrapassar a sua condição fenomenológica. Porque “o conceito de natureza humana (…) tem, pois, um sentido metafísico e não meramente naturalístico, fenoménico ou empírico” (Mário Bigotte Chorão). É esta potencialidade que faz do homem uma realidade natural única. “Pensando sem demasias vãs não podemos encontrar senão três estádios possíveis do Ser: o do enigma ou do drama que se ignoram, o do enigma ou do drama que são conscientes de si, e o do ser que é uno com a verdade e o Bem e a que todo o enigma e a que todo o drama infinitamente supera. Entre os seres que o instinto guia, e em que o enigma e o drama se ignoram, e aquele que consiste no supremo bem ou na inteligência suprema, está o homem. E sempre este ser instável se dirigiu ora num sentido ora no outro, como o que está a meio da grande escada e ora a desce, ora a sobe. Em todos os tempos e lugares o homem se comportou ora como um animal, ora como um ser de natureza divina” (José Marinho).
Esta potencialidade, de ultrapassar a sua condição fenomenológica, é pressuposto do homem, está latente no homem, e, é propensa à sua efectivação.
É pressuposto, na medida em que é ela que confere ao homem a sua natureza humana. Quando se fala deste, necessariamente pressupõe-se aquela. Ela é, para se falar de homem, condição sine qua non, e, como tal, algo de inalienável. Numa imagem, ela é a porta aberta que o homem não pode fechar, e da qual lhe cabe fazer uso. Se, de facto, fará ou não, isso já é da ordem do livre arbítrio.
Está latente no homem, porque sempre, na sua acção, se suscita a hipótese de fazer uso desta potencialidade, de entrar pela porta, de seguir melhor caminho! Ainda que este uso saia frustrado, porque, como diz S. Paulo: “Eu encontro, pois, esta lei em mim: quando quero fazer o bem, o mal está junto de mim (…)”.
É propensa à sua efectivação, porque ela não existe por existir, nem se suscita na acção humana por acaso. É potencialidade que se quer cumprir, verter em acção. O que, por sua vez, nos permite vislumbrar a importância da acção no homem (tanto subjectiva, como objectivamente considerada!). A natureza humana será “…um conceito teleológico que implica o dinamismo da acção do homem em direcção aos seus fins essenciais” (Mário Bigotte Chorão).
É assim a natureza humana, o ser do homem: a possibilidade de ascender a coisas divinas sem abandonar a sua condição natural. “O homem não é um globo que suba no espaço nem uma toupeira que sulque o subsolo, mas uma espécie de árvore cujas raízes se nutrem debaixo da terra enquanto os seus ramos tendem a tocar os astros…” (Chesterton).
Daí que, desta verdadeira propensão, possamos retirar uma conclusão: o homem é projecto, é ser que tende sempre para a realização da potencialidade que encerra em si mesmo. “O homem tem de imaginar a sua vida, tem de descobrir o horizonte das possibilidades, de suas circunstâncias ou de suas dificuldades, tem de projectar quem ele vai ser” (Julían Marías). E é assim que, na natureza humana, mais do que o ser, devemos lembrar o sendo. O homem não se faz a si mesmo (não tem poder sobre o ser), mas constrói quem é (determina-se no sendo!). E fá-lo-á tanto melhor, quanto mais descobrir as suas potencialidades.
No fundo, antes de falar com Píndaro, o homem tem de ir a Delfos. (De Píndaro recebemos o desafio: homem, torna-te o que és. Em Delfos, encontrávamos a frase gravada: conhece-te a ti mesmo! Desta forma, quer-se significar que antes de o homem se tornar no que é, tem primeiro de se conhecer a si mesmo…) O homem precisa de se conhecer a si mesmo, o que, por sua vez, significa conhecer a sua potencialidade para ultrapassar a sua condição fenomenológica, mas também experimentar (ainda que de forma limitada) essa realidade para a qual a sua natureza o impele. Só então, poderá o homem tornar-se no que é. Ou corrigindo o autor, se me for permitida a ousadia, só então, poderá o homem tornar-se no que tem em si para ser.
É caso para dizer: estranha natureza, a humana, que faz o homem naturalmente tender para algo mais do que o natural…
Convém, porém, esclarecer um aspecto. É usual cometer-se um equívoco, quando se fala da essência do ser humano: costuma-se remeter esta para a figura do homem ideal. É um erro! O homem não é um ser ideal, nem a sua essência é a de um ser ideal, que fique claro. Contudo, essa ideia de ser ideal está no horizonte do homem, é da natureza humana a vocação para tal – distinção importante.

Diz-se que definir algo, até pela raiz da palavra no latim de + finire, é pôr-lhe um fim. É, por isso, extremamente interessante verificar que, com esta definição do homem, contrariamente não se lhe põe um fim, mas, antes, dá-se-lhe um início, um ponto de partida!

Posto isto, que dizer da natureza humana: será boa ou má?
Estou em crer que é tarefa difícil e complicada poder afirmar, tout court, que ela é boa. De entre algumas razões, surge-me esta interrogação de forma mais pertinente: será que é possível que, de uma boa natureza, possa decorrer uma tão má condição humana como aquela com que somos constantemente confrontados?...
Por outro lado, afirmar que ela é má, é, simultaneamente, concluir que tudo o que de bom possa existir no homem é, ao fim e ao cabo, contra naturam – o que, de todo, me soa a razoável…
E muito menos se poderá dizer que ela é “nem boa, nem má”, posto que o homem não tem uma natureza axiologicamente neutra!
De facto, o que me parece mais plausível, embora polémico, é assumir o carácter contraditório da humana natureza: ela é simultaneamente boa e má!
É boa, porque é vocacionada para o Bem. No entanto, esta vocação tem de ser aceite livremente pelo homem, o que implica o livre arbítrio. Ora, na medida em que se admite o livre arbítrio ainda que vocacionado para dele se fazer bom uso, tem de se admitir também a possibilidade do seu mau uso. Ou seja, a natureza humana tende para o Bem, mas comporta em si a possibilidade do mal; nela podemos encontrar, continuamente, em tensão, estes dois planos.
Daí que advogue um optimismo antropocêntrico em potência, mas ceda a um pessimismo realista (embora não completamente vencido ou rendido…).