terça-feira, 28 de outubro de 2008

À saída, bateu com a porta apressadamente. Já estava atrasado para o encontro com ela. Na sua idade, o corpo não responde tão bem quanto se gostaria, pelo menos, em certos dias… São as dores do reumático que o clima teima em influenciar. No seu caso, eram os joelhos: um ou dois dias antes de haver mudança de tempo, ele já o sentia nos joelhos doridos, gastos por quase setenta anos de correrias. Nesse dia, ficara mais uns minutinhos na cama para terem um pouco mais de calor, ou, como ele gostava de dizer, para lhes dar quentura! A partir daí, fizera a barba com todo o cuidado possível para ficar com o rosto impecável para ela, dera o seu duche rápido, perfumara-se bem, vestira o seu melhor fato, impecavelmente preparado de véspera, e tomara o pequeno-almoço. Quando saía, reparou que um dos sapatos poderia estar mais apresentável. Não hesitou! Tirou-o e toca a engraxá-lo até ficar suficientemente reluzente. Agora, sim, estava exemplar. Irrepreensível! Ela merecia-o, afinal de contas…
Tomou um táxi, numa rua mais abaixo, e saiu a cinquenta metros da entrada. Preferiu assim para poder passar por umas senhoras, floristas de rua, habituais por aqueles lados, a quem comprou um raminho de gardénias. Para ela, claro! Dirigiu-se, então, aos portões da sua morada e passou-os tão ligeiro quanto os joelhos lhe permitiam. O caminho já estava há muito ensaiado, por isso, daí a nada, chegava à sua beira.

Olhou-a na fotografia que a campa exibia. Tão bonita! A mulher mais bonita que ele conhecera… E, por um momento, fez-se paz nele. Tinha chegado, estava com ela, podia descansar. Agora, não precisava mais se despachar. Ficaria o tempo que demorasse a pôr a conversa em dia. Já não era o relógio que o comandava, mas a companhia! Os seus movimentos tornaram-se mais lentos e, em cada um deles, o carinho revelava-se na atenção, na diligência com que procurava deixar tudo perfeito, trocando as flores murchas pelas frescas compradas há instantes, na limpeza da poeira de um dos lados da sepultura, na vela que reacendia para arder um pouco mais… Acções que lhe distraíam a mente, enquanto lhe aliviavam a dor. Fazia alguma coisa por ela, deixava de ser nesses instantes um inútil. Até, claro, ao momento em que não restava mais nada para fazer! Aí, quedava-se, quieto, contemplando-lhe o rosto na sua fotografia.

“Ainda hoje me enamoro de ti! Basta a sombra do teu olhar para não conseguir resistir. És tão bonita! Não sei se o resto do mundo se apercebe, mas és tão bonita… Eles apenas te vêem o rosto, mas eu conheci-te o coração. Ainda assim creio que, se te dessem um pouco de tempo para verdadeiramente te olhar, iam conseguir intuir e perceber que tenho razão. Tu és o meu lar encantado! O meu tecto, o meu abrigo…Podem as pessoas sentir atracção, apaixonar-se, amar, podem relacionar-se de formas com diferenças de mil tons, que duvido que venham a saber o que tu me mostraste: amar fazendo sentido! Um amor em que tudo se encaixa, não por ser perfeito, mas porque as diferenças não têm valor… Um amor que ultrapassa dúvidas, medos, interrogações, porque o próprio ser clama por o viver. Um amor que dá sentido ao estar contigo, ao ter-te e a me dar. Em que as hesitações caem por terra por vergonha de existir. Foste tu que mo ensinaste! Foste a minha professora e a minha guia… E aflige-me pensar que não te tenha amado o suficiente, que te tenha falhado na esperança que puseste em mim. Acho que nunca to disse, mas, por vezes, quando estava contigo na cama e te via, descansando, nua, em meus braços refugiada do mundo, até me doía a alma… até me doía a alma, porque estarmos assim agarrados, sentindo a tua pele na minha, ainda era estar tão longe de ti! Queria-te mais perto… queria fundir-me contigo. Imagina o que me dói hoje, quando já só te posso encontrar no meu coração! Aquele poeta quase tinha razão quando falava do amor da vida dele, lembras-te? Aquele que dizia que, quando ela fechava os olhos, era ele que adormecia. Pois aqui estou eu! Tu fechaste os teus, e fui eu que morri…”

Voltou as costas à campa para ir embora. O amor o tinha trazido e o amor o levava agora. Se doía estar longe, doía mais estar quase perto…

O sol brilhava naquela manhã fria, tal como os meteorologistas tinham previsto que seria, na véspera. Só não conseguiram prever a chuva que se abatia a partir dos olhos dele.