quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Se tivesses de algo escrever, sobre o que quer que fosse, sobre o mero estar ou o intenso ser, sobre o salgado mar ou a água doce, o que escreverias?... Conta-me o que dirias! Se tivesses de pensar e escolher as palavras que servissem de teu legado de vida, quais farias que surgissem nessa hora pedida? Imagina-te na maior das confusões, à mercê da loucura de multidões, com os ouvidos atulhados em barulho, os olhos engarrafados pelo entulho de formas de seres nem bons nem maus, mas que te envolvem num caos que não te deixa sossegado e te mantém aprisionado… Imagina-te com a mente paralisada por um momento de intensidade tão forte que cria em ti mais nada além da vontade de quem se rende à sorte de se deixar ir nesse rio de emoções sem siso em que o controlo se perde para fluir o improviso… Imagina-te sem querer pensar, só a reagir, longe de lutar e quase sem resistir, cansado de pensar em responsabilidade, levado a preferir a leviandade, como se os teus actos fossem inconsequentes e o teu ser se esgotasse na face fugaz do instante que se faz com o passar dos segundos… O que escreverias então? Serias capaz de encontrar em ti aquilo que o ambiente à tua volta não te oferece? Serias capaz de fazer silêncio apesar da teia que o tumulto tece? Ou nem te darias ao incómodo e cederias ao impulso de abandonares o raciocínio ao acaso, de molde a que a incoerência ou a mera imbecilidade tomasse o trono do teu desvario e reinasse na tua ausência? Pergunto-me se escolherias contar uma mentira ou buscar a tua verdade, ainda que isso te fira e te roube tranquilidade… Pergunto-me se te confrontarias contigo mesmo finalmente, ou, pelo contrário, insistirias em te largar perdidamente a essa fuga esquiva do ser que faz de ti otário e te suga o gozo de viver… Nem sempre é fácil escolher certo entre a máscara e a nudez! Quem chega muito perto, tolda-nos a sensatez. É o assalto ou do medo e da vergonha (que aparecem cedo e sempre com força medonha), ou da vaidade e do orgulho (de uma garganta alarde que exibe o seu arrulho), que condicionam a luz encantadora da nossa autenticidade, que incendeiam a chama devoradora do lenho seco que é a nossa verdade, onde se esconde a chave desse desejo grave que é ter paz… tão frágil quanto valiosa e bela! Terá uma criatura à sua disposição alguma coisa mais preciosa para além dela?

Se a verdade pode doer, é, porém, a mentira que corrói. A verdade traz as rugas profundas da exposição prolongada ao sol, as cicatrizes das feridas demonstrativas da nossa vulnerabilidade. Mas a mentira traz a ferrugem provocada pelo frio húmido que arrefece a nossa alma, a corrupção do ar que enche os nossos pulmões de negro. A verdade expõe-nos ao desconforto da nudez; a mentira aprisiona-nos ao agasalho cómodo do que nos cobre. A mentira veste enquanto a verdade despe… A mentira é vaidosa, consuma-se na ilusão e embala o coração no triunfo fácil da ocasião. A verdade é despretensiosa, realiza-se no que é e emprenha o ser de modéstia e humildade. A verdade implica aceitação. A mentira permite a fuga… E fugir é o que a maioria de nós quer. Fugir sem se saber muito bem para onde, mas fugir! Tirar férias de si mesmo. Ausentar-se da consciência para evitar as frustrações. Ser leve como um espírito para não se ser julgado pelo peso da carne e do corpo, das consequências das nossas decisões. Regressar à idade da inocência e ficar por lá indefinidamente. Enfim, fazer algo que sirva de apaziguamento a essa insatisfação que, de mansinho, se aproxima e insinua, para se instalar e tomar conta de nós sem dó nem piedade.
Porque é esse o grito que se levanta na surdez da desesperança: o amor à vontade de voltar a ser criança! O triunfo da simplicidade que nos faz feliz, que, então, naquela idade, não se luta por ter, mas se tem por natural. Depois… depois, cresce-se. E o que antes era intuitivo, precisa agora de ser racional: a escolha, que acompanha o homem, entre o bem e o mal, e que, de tanto ser caminho, se transforma em seu destino… É a nossa responsabilidade e a nossa liberdade!